"...who'd have known, when you flash upon my phone i no longer feel alone"

- Lily Allen

BitchyList

quarta-feira, 25 de abril de 2007

A História de Isobel

Parte 1: Comportamento Humano
No breu da floresta brilhou a menor das faíscas. Deixe-me falar-lhes sobre faíscas. São raras as pessoas que realmente prestam atenção na magnitude dessas coisinhas; soa até como um oximoro, magnitude e faíscas, mas estas possuem um potencial que poucos se dão conta, ignorando que basta uma mínima faísca para explodir um galão de gasolina. Portanto, quando esta nasceu no ponto mais distante e hostil da floresta ninguém prestou atenção. Na verdade ninguém se deu conta da existência dela durante muito tempo.
A pequena faísca, apesar de se deparar sozinha no meio da mata, não se sentiu nem um pouco assustada com as gigantescas árvores e criaturas que habitavam com ela aquele ambiente. Honestamente, a faísca era jovem demais para saber o que era medo. Ela era como uma tabula rasa ainda esperando ser escavada e preenchida. Como eu disse, faíscas são pequenas e aparentemente insignificantes, mas esses conceitos são humanos e para esta faísca não havia problema algum em ser um quase nada na gigantesca floresta. Podemos dizer que a frase "ignorância é felicidade" funcionava em essência para a faísca, cuja única certeza contida na mente era o seu nome. Tal conhecimento era para ela o único mistério; no momento em que surgiu essa era a única coisa em sua mente e obviamente ela não fazia idéia do porquê seu nome era Isobel.
Por instinto ela simplesmente começou a caminhar, flanar por aquele universo que era seu lar. Isobel desconhecia o conceito de lar como nós o definimos, porém havia nela a sensação de que aquele espaço inteiro era seu, ao mesmo tempo em que a grandeza do local também a fazia pensar que, por contrário, era ele quem a possuía. Sentia como seu dever explorar e conhecer o âmago daquele grande parente desconhecido, entender suas nuances e vastas cadeias, até mesmo como uma questão de sobrevivência. Um dia enquanto caminhava por um lugar até então nunca visto, a minúscula centelha se deparou com uma claridade que ofuscava sua vista; ela percebeu também que nesse local os animais passavam por ela como se não a vissem, coisa que só acontecia nas trevas com alguns insetos, como traças e mariposas.
Isobel então vivia na floresta e com o passar dos anos ela a conhecia muito bem. Sabia a finalidade das ervas, o funcionamento das cadeias alimentares e das leis da natureza, o ciclo das águas. Sabia a língua de todos os animais com os quais convivia; eles foram responsáveis por muito do conhecimento que ela adquiriu. Por eles tomou notícia das mudanças bruscas que aconteciam na floresta e de um grupo de seres, que segundo os ursos, eram menores que eles ["e os ursos são os maiores animais que conheço”], porém comportavam-se como maiores que todo mundo, maiores até que a floresta. Eles também a contaram que esses seres, chamados humanos, viviam longe, bem depois das orlas da mata, mas que vinham aproximando-se numa velocidade incrível. Uma lagarta contou-lhe um dia que um desses humanos chegou a uma clareira e se apoderou dela como se nada ou ninguém estivesse antes por ali. ["Da maneira mais ridícula e insensata ele derrubou algumas árvores, inclusive moradias de algumas amigas minhas, que por pouco não morreram. Inclusive uma delas está morando comigo em minha folha e por Deus, Isobel, como ela come! Daí o humano construiu com as árvores uma caverna engraçada e mora lá desde então."] Aquela história assustou Isobel por um momento, contudo, com sua mentalidade de criança, ela não se preocupou muito. A floresta era grande demais e duvidava que um dia chegasse a encontrar esse tal humano. Mais tarde, um porco-espinho contou-lhe que o tal humano fora finalmente devorado por um urso, "depois que este encontrou aquele apontando uma vara que brilhava à luz e que fazia um estrondo horrivelmente ensurdecedor para um alce."
Chocada, Isobel percebeu que no fundo estava um pouco decepcionada porque não chegaria a conhecer aquele humano. No auge dos seus seis anos ela conhecia bastante a floresta e mesmo que a cada dia ela se surpreendesse com a mata ["um dia enquanto procurava ervas para um chá, me deparei com uma flor que nunca tinha visto antes. Era linda!!" - disse um dia a uma aranha com quem encontrara numa de suas andanças], a presença daquele tal ser humano que morava numa caverna de madeira fascinava-lhe e instigava uma coisa altamente comum e usual dentre os seres de sua idade: a curiosidade.
Semanas e meses depois, mais especificamente no dia em que faria sete anos que havia surgido no seio escuro da floresta, ela se deparou com uma clareira próxima à saída da mata. Como era seu sétimo aniversário, Isobel decidiu perambular por lugares onde ela com certeza nunca fora e de repente deparou-se com a dita clareira. E ali ela embasbacada encontrou a construção "engraçada" da qual a lagarta contara-lhe há quase um ano. Algo dentro dela entrou em erupção; um excitamento e um fogo que ela, não sabia dizer como, sentia-se maior que seu próprio corpo. A pequena, porém não mais tanto, faísca controlou aquele sentimento, mas não a sua vontade de dar um passo à frente e adentrar aquela caverna artificial.
Isobel não saberia descrever a sua emoção ao entrar naquele lugar. Era um misto da já comentada excitação com certo medo, combinados a uma ponta de tristeza. Por que tristeza, você deve se perguntar; como disse, nem Isobel saberia explicar ao certo, mas era certo até para ela que no momento em que ela entrou e fechou a porta atrás dela, sua vida mudaria para sempre e a tristeza bateu-lhe ao instantaneamente pensar na floresta.
Ela nunca mais saiu dali, a não ser para buscar comida e ervas nos arredores da cabana. Os animais até comentaram sua repentina ausência logo no dia de seu aniversário, alguns com um pouco de desdém, outros com sincera saudade, mas Isobel estava imersa e fascinada com aquele novo e pequeno universo que encontrara. Alguns animais a visitavam, geralmente traças e mariposas, ou ocasionais aranhas. Sempre que tais visitas ocorriam, ela conversava com eles como se nunca houvesse deixado seu convívio; e se divertia contando as coisas que vinha descobrindo sobre os humanos, com os objetos que encontrava na caverna. Alguns ouviam maravilhados, outros assustados e outros ainda com desdém natural de animais de sangue frio. Isobel contava-lhes sobre objetos de diversos tamanhos, repletos de folhas "um tanto porosas com símbolos inscritos."
Certa noite Isobel fitou mais uma vez uma interessante caixa de um material que ela não sabia identificar e que possuía duas longas antenas no topo. Desde que chegara ali aquela caixa causava-lhe espanto e por isso sua curiosidade em relação a ela era quase insuportável. Nessa noite ela simplesmente resolveu chutar o medo dentro dela e apertou um círculo que havia no canto direito da caixa. E como num passe de mágica a caixa se acendeu e uma infinidade de luzes, cores e sons foram transmitidos por ela. Isobel não sabia nem como reagir àquilo, ficou lá parada e boquiaberta em frente à caixa. Passado o estranhamento ela observou que as imagens mostradas pela caixa eram de seres bem parecidos com a descrição que os animais deram sobre os humanos. Ela passou a assistir àquela caixa diariamente, parando apenar para comer. De repente se viu falando como aqueles humanos na caixa, "finalmente aprendi a língua deles" ela pensava, e com o tempo aprendeu também a desvendar os símbolos escritos naqueles objetos, os quais ela descobriu que se chamavam livros.
Os livros, assim como a caixa, falavam basicamente dos humanos. As palavras engrandesciam-lhe e a preenchiam de conhecimento sobre aqueles seres tão estranhos: ora mal-humorados e de repente violentamente felizes. Na caixa, via seqüência de imagens que pareciam com os livros, porém eram chamadas de filmes; inclusive certa noite viu um que tinha mesmo nome e trama de um dos livros que lera. Eles falavam sobre uma mulher fascinante que morava no sul de um país e que enquanto acontecia uma guerra, ela perdia sua fortuna e depois a recuperava de forma triunfal. Isobel sentiu uma vontade de ser como aquela mulher, porém não queria enfrentar uma guerra. Fora a coisa mais assustadora que vira.
Assim como em alguns poucos livros da caverna, a caixa às vezes falava da floresta e dos animais. De maneiras bem estranhas e preconceituosas, ora altamente equivocadas, segundo Isobel e seu conhecimento. Havia até imagens, chamadas de cartoons, em que os animais falavam e se comportavam como os humanos; posteriormente ela percebeu que eles utilizavam animais com aquelas características para simplesmente falar deles mesmos. Aquele auto-centrismo, de alguma forma, a fascinava. "Como eles conseguem ser tão absorvidos neles mesmos com esse mundo enorme aí fora?", disse ela um dia para uma pequena serpente que a visitava. Esta a fitou com seus olhos de maneira bem entediada e misteriosa e disse "olha quem está falando! Você, desde que entrou aqui, está cada vez mais parecida com esses seres de que tanto fala."
As palavras daquele réptil atingiram-na como se ele a tivesse picado. Irritada, Isobel voltou para seus afazeres na caverna de madeira, mas aquela fala penetrava em suas veias como veneno. Ao cair da noite ela acendeu uma lâmpada e ao estender os braços para pôr a bacia d'água sobre a mesa, ela tomou um susto. Seus braços e mãos estavam iguais aos dos humanos na caixa! Ela aproximou-se da lâmpada que refletia sua luz na água e seu susto foi ainda maior ao ver que seu rosto também era idêntico ao dos humanos. Seria o veneno da serpente o causador daquela metamorfose? Ou seria ele, na verdade, um despertador? Será que ela sempre fora humana e só agora percebia?
Mas antes que chegasse a um quilômetro das respostas, sua atenção foi desviada para uma traça que de encontro à luz da lâmpada se debatia desesperadamente. Isobel começou a gritar com o inseto para que ele se desviasse da luz; tinha uma simpatia pelas traças, suas visitas mais constantes, e aquela parecia fadada à morte, pois não a parecia entender. Isobel então percebeu que ralhava contra a traça na língua dos humanos e ao esforçar sua mente para lembrar a língua daquele bicho, ela frustrava-se no branco do esquecimento. Até que a traça queimou-se na morte e caiu na bacia d'água. Isobel, estressada e triste, aproximou-se mais uma vez da água, fitando seu rosto refletido sob a traça morta.
Cansada ela retirou-se para sua cama e dormiu. Caiu num sono profundo e assustador; sonhou que foi comida por um urso e que agora morava em seu estômago. De repente ela foi acordada por um barulho estranho, que na verdade soava como uma cornucópia de sons. Ela levantou-se lentamente da cama e foi direto para a bacia sobre a mesa. A traça já não estava mais lá. Encucada ela aproximou-se e viu que sua imagem refletida era diferente da que vira na noite anterior! Olhou para suas mãos e braços e viu que eles cresceram. Olhou-se mais uma vez no espelho d'água e notou que seus cabelos também estavam enormes. Ela correu para um calendário pendurado na parede e constatou que anos se sucederam. Ela dormira com doze anos e acordara com dezesseis! A faísca explodiu-se numa chama.

[Musique: Human Behavior - Björk]